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Orgulho 2021

Pelo segundo ano consecutivo, centenas de milhares de pessoas não puderam ir à Avenida Paulista celebrar a escolha que fizeram de viver suas sexualidades tal e qual sua própria condição, mesmo que isso signifique certa afronta social e, principalmente, uma dose nada desprezível de conflitos pessoais, familiares e psicológicos. Embora pareça, há alguns anos, que a não-heterossexualidade como que entrou na moda e que vivenciá-la seja uma espécie de recreação da sexualidade, diariamente, pessoas sofrem todo tipo de violência em suas casas, nos seus empregos e nas ruas. Muitas são as problematizações possíveis dentro do contigente populacional LGBTQIA+, não só no que diz respeito à complexa representação dos distintos e diversificados membros, como também nas possibilidades de viverem suas sexualidades em suas realidades sociais. Ainda que a aceitação da homossexualidade tenha aumentado consideravelmente nas últimas décadas, é fácil perceber que a sociedade moldou um tipo de homossexual

Escola

Desde que retornei a São Paulo, cerca de dez dias atrás, uma única questão não sai da minha cabeça: por quanto tempo mais isso vai durar? Já estamos há quase quinhentos dias imersos em incertezas e negacionismo. É bem verdade que algumas pessoas retomaram suas vidas como se praticamente nada estivesse acontecendo, por dever de ofício ou puro egoísmo, como também é fato que uma parcela da população, ainda que ínfima, tomou a tal vacina. Mas não é possível que as pessoas considerem que esteja tudo bem. Sem nem ao menos mencionar a quantidade absurda e crescente de mortos por causa da pandemia, a ameaça de novas cepas ou ainda o surreal atraso de uma campanha consistente e continua de vacinação em massa, é impossível que ainda assim pessoas achem que a vida voltou ao normal e que já se pode viver como se não houvesse amanhã – do jeito que a coisa anda, talvez nem haja mesmo.  Estive com uma pequena parte dos meus alunos nos últimos dias, e confesso que senti alegria, principalmente

Mamacita

O que você faria se, por um prazo determinado, cada passo da sua vida fosse devassado por milhões de pessoas; visto, revisto, comentado e julgado por toda nação? A premissa central do Big Brother segue aterrorizante e sedutora há duas décadas.  Os tempos mudaram, é verdade. Atualmente, famosos e anônimos oferecemos detalhes de nossas intimidades na praça pública das redes sociais sem muito pudor. Mas por mais fúteis ou mal calculadas que sejam nossas postagens, nada chega perto do escrutínio diário na maior rede de televisão do país e em dezenas de plataformas e perfis dedicados exclusivamente ao programa.  Pelo segundo ano consecutivo, aliás, acompanhar o BBB foi uma espécie de alívio cômico à catástrofe nacional em que nos metemos. A questão é que o Big Brother Brasil leva mais longe o limite entre ficção e realidade ao qual somos tão afeiçoados. Ele não é exatamente a realidade, mas também nunca a deixa de ser. A edição deste ano tocou em feridas sérias ao escancarar tortura

Ficção brasileira

A narrativa ficcional brasileira talvez seja o que de melhor foi criado para falar de nós ao mundo. Quão brasileiramente universais são as linhas de Machado de Assis e quão profundamente humanas são as vivencias de amor e mistério no ser-tão de Guimarães Rosa. A ficção nacional e o modo como lidamos com ela despertam o interesse de intelectuais do mundo todo, particularmente desde que encontrou sua forma mais popular e rentável: a telenovela.  A ascensão de transmissões por demanda e a popularização do formato das séries botou a novela de televisão em xeque: profetizaram seu fim e anunciou-se que o reality show seria seu substituto natural. De uns tempos para cá, se questiona, se desmerece, se torce o nariz, mas telenovela é uma longeva paixão nacional. Nada para mim substitui o dramalhão e a intensidade de um bom novelão. As séries são incríveis, os realities engajam, mas novela é novela. É bem verdade que houve certo marasmo: por décadas medalhões revezaram-se no horário nobre

Curadoria de inutilidades

Nada é mais elucidativo de saúde mental do que a observação de como estamos percebendo a passagem do tempo. Do ponto de vista natural, o ritmo do tempo é sempre o mesmo. É verdade também que o tempo oscila, as estações do ano, por exemplo, alteram radicalmente a duração do dia e da noite. Ou seja, o tempo é constante, mas muda. O ritmo do tempo é sempre o mesmo, mas nossa percepção sobre ele não o é. Exortados a ficar mais em casa, fico me perguntando o que as pessoas fazem com o tempo. Ainda que parcela significativa da população continue a sair regularmente, estamos todos permanecendo mais em nossas residências do que costumávamos. E o que se faz com tempo? Em São Paulo, sobretudo durante os dias de isolamento absoluto por conta da Covid, meu tempo transcorreu bem lentamente. Os dias se arrastaram, e eu os preenchi como pude: leitura, meditação, séries de tv, yoga e videogame. O ocupei, mas não o preenchi. Em São Roque, de volta às aulas on-line, as atividades são basicamente

Sob controle

Na quinzena mais complicada da pandemia até aqui, eu entrei para as estatísticas como um dos infectados por SARS-CoV-2, o novo Coronavírus. De imediato, todo tipo de pergunta passa pela cabeça. Pouco a pouco, uma compreensão ainda mais ampliada do tamanho do buraco em que estamos metidos.  Depois de ter permanecido por dez meses no sítio em São Roque, eu precisei voltar a circular pela capital paulista desde o início de janeiro por uma série de questões profissionais. E disso, a decorrência da pergunta que mais me fizeram: onde eu me infectei? É impossível saber. Fato é que, estando na capital, eu precisei circular pela cidade; usei metrô, ônibus e carro de aplicativo, encontrei amigas muito íntimas duas ou três vezes, recebi a diarista, fui algumas vezes à escola, ao mercado e à farmácia, tive de almoçar em restaurantes, e estive em São Roque duas vezes, enfim, operacionalizei minha vida. Ou seja, não tem como saber. O máximo que se consegue é ter uma vaga suspeita dos prováveis d

Como as sociedades lidam com doenças

Diferentes enfermidades despertaram o pavor e a ansiedade de nossa miséria humana ao longo dos séculos. A crise do coronavírus não seria uma novidade em si mesma se nossas organizações sociais não tivessem mudado tanto e tão rápido nas últimas sete ou oito décadas. Para além da necessidade evidente de imunizar a população e da desesperadora incompetência do poder público, uma outra realidade despertou atenção ao longo dos meses. Se é fato que a medicina avança a passos largos, acende meu interesse um outro viés da questão: como as sociedades lidam com doenças? A hipótese que vem a mente é que, diante do desconhecido ou pouco informado, a sociedade responde com preconceito. Essa é a resposta imediata: se eu não conheço ou não sei lidar, quero manter distância. Foi assim com a tuberculose, foi assim com o HIV. E, quando a ciência começa a desvendar o enigma, o preconceito, antes talvez justificável, torna-se estigma ou irresponsabilidade. Estigma como o que ocorre com a infecção po

Uma terra prometida

Há momentos sublimes na História. Nossa geração testemunhou um deles há exatos doze anos: em 20 de janeiro de 2009, Barack Hussein Obama era empossado presidente dos Estados Unidos da América, o primeiro presidente negro no mais alto cargo da até então inquestionável potência mais poderosa do mundo. O fato de Obama ser um homem preto em um país forjado nas mazelas da escravatura sem dúvida valida de maneira sólida o que ele representava para o mundo e dimensiona o peso de seu valor histórico. Todavia, é preciso olhar Barack Obama para além da evidência étnica, sem deixar de incluí-la, e tentar compreender um pouco o que significou o seu governo.  Tenho clara memória de quando, Angela Merkel, primeira ministra alemã, com a solidez rígida que a caracteriza, despedia-se em um misto de melancolia e orgulho do colega que tanto representava para o mundo. Obama, durante os dois mandatos, pareceu perseguir da melhor maneira que pode a responsabilidade de ser Nobel da Paz. Se talvez as armas nã

Exu matou um pássaro ontem

Talvez o único e grande ganho desta catástrofe tenha sido a oportunidade e mesmo a obrigação de parar e pensar um pouco. Não o tipo de pensamento irrefletido, quase um impulso, que nos leva a tomar decisões em cima de decisões sem nem ao menos cogitarmos o que realmente pode acontecer ou desdobrar das ações que praticamos levados pelo frenesi dos dias. Quantas consequências poderiam ter sido evitadas, quantas histórias de amor teriam fins mais belos, quantas vidas teriam sido poupadas, quanta humanização poderíamos ter legado… De umas décadas para cá, o mundo parece ter caído sobre nossas cabeças e em nossos colos repousa uma bomba prestes a explodir. Não sei o que há com o mundo e muito menos com as pessoas, o planeta agoniza a olhos vistos e nós continuamos ascendendo governos autoritários. Um colapso parece certo se algo não for feito imediatamente. Costumo dar particular atenção às redes sociais de pessoas que, como eu, fomos crianças ali pelos anos 1990. Nós somos a geração que re

Onda

É habito de alguns dos maiores dicionários do mundo eleger a palavra do ano: um termo, um vocábulo, uma única palavra que seja capaz de sintetizar todas as reviravoltas dos últimos doze meses. O desafio já não seria pequeno em um ano comum, 2020 intensifica o desafio.  Evidentemente, a proposta exige algum nível de arbítrio. Reduzir os acontecimentos a uma única palavra não é tarefa que saia ilesa a dose não pequena de sintetização, mas vale como jogo ou mesmo como lampejo do espírito do tempo.  Arriscaria dizer que o termo eleito para este ano será “lockdown”, com suas variantes brasileiras “trancadão”, “trancadaço" ou “fecha tudo”. Acho legítimo. O terror da pandemia só começou a ser levado a sério quando o poder público viu-se obrigado ao inevitável: paralisar a economia mundial antes que a Covid encerrasse a possibilidade de sequer voltar a haver uma economia para ser trancada.  As consequências são óbvias e tornar-se-ão mais evidentes a partir do ano que vem, quando as vacina

Mais que importam

A atrocidade das imagens do último final de semana obriga-nos todos a profundas reflexões sobre o que estamos fazendo enquanto sociedade. Mais uma vez, uma vida de pessoa preta foi humilhada, tirada à base violência brutal e exposta em praça pública, com o requinte da exposição eterna e vertiginosa das mídias sociais. Se isso não é racismo, eu não sei mais o que é. O transcorrer do tempo de fato atualiza meios, formas e gestos, mas, de maneira impressionante, as coisas não deixam muito de ser aquilo que têm sido há séculos. É difícil explicar o que seja "racismo estrutural", porque muitas pessoas não querem simplesmente admitir que exista, apesar de estar escancarado em não poucos contextos. Mas vamos lá, tentarei o feito: a ideia de atualização está presente em nossos cotidianos de maneira bastante recorrente. Já de algumas décadas se tem a noção de troca de um produto eletrônico por um mais moderno que faça as mesmas funções do anterior de maneira mais ágil, moderna e mais

Pare o vórtice

Deu-se o primeiro turno das eleições municipais. Em São Paulo, onde eu voto, não houve grande supresa em relação àquilo que já se delineava nas semanas antecedentes ao pleito – ao menos não na minha bolha do Instagram –, o que não significa que detalhes não devam ser observados minuciosamente. Não sou analista de imprensa e muito menos cientista político, mas gosto de eleições; identifico-me com o espectro de esquerda e tenho acesso amplo a diferentes veículos de imprensa. Sobretudo, sou eleitor atento e humanista convicto e comprovado. Além disso, gosto de distribuir minha opinião por aí. Vamos a ela: O grande deleite das eleições paulistanas de 2020 foi a ida de Guilherme Boulos para o segundo turno. Candidato de partido nanico, mas estrondoso – o PSOL – Boulos aliou-se a Luíza Erundina, figura histórica da esquerda nacional, que aos 85 anos de idade decidiu ofertar seu carisma, experiência e histórico a um projeto de esquerda que parecia pouco provável, mas revelou-se uma grande for

Competência democrática

Se algo deva ser entendido a respeito das eleições estadunidenses deste ano é que voto importa. Para nós brasileiros, é até estranho observar que a maior democracia do mundo tenha um sistema eleitoral tão confuso. Nós, tupiniquins, enquanto sociedade, talvez não compreendamos, como eles, o valor pleno do sentido democrático. A deles é muito mais antiga que a nossa, muito mais. A nossa, tão jovem, ao menos soube organizar-se melhor.  Não faz muito tempo que usei destes mesmos canais para defender que eleição não é torcida, mas é irônico notar que ninguém vota centrado na racionalidade dos valores democráticos para o bem comum. Vota-se é no sangue mesmo, sangue no olho, na obsessão da torcida e na passionalidade de querer estar com a razão, custe a quem custar. Os Estados Unidos pagaram caro nos últimos quatro anos por seu sistema eleitoral incompreensível, arrisco dizer, até para quem é de lá. De outra perspectiva, o nosso, tão melhor organizado, igualmente se dá ao luxo de nos le

A morte do simbólico

A morte é algo sempre surpreendente e incompreensível, ao mesmo tempo que tão corriqueira e banal. Por uma série de razões ela é o grande mistério e o grande milagre da vida. Só é possível estar vivo, porque um dia se estará morto. A humanidade nunca soube lidar bem com a morte: ao longo dos milênios tornamos um fato natural em algo do plano simbólico. Morrer é algo fisiológico, assim como temos de comer, beber, dormir, defecar ou urinar, um dia teremos de morrer. É o corpo e seu funcionamento, a natureza e suas regras.  É possível que fôssemos outra humanidade se tivéssemos lidado de maneira diferente com a morte. Eu tendo a imaginar que o "bicho gente", milênios atrás, começa a virar humanidade quando passa a lidar com morte. Claro, a morte sempre existiu, mas suponho o homem compreendendo a morte como algo instransponível, sem volta e inevitável. Há muitas teorias, aliás, que dão o fato consumado da morte como a origem da ideia do sagrado, do transcendente, de Deus,

O Livro das Mutações

A China despertou meu interesse quando ouvi falar pela primeira vez do oráculo I Ching – o Livro das Mutações . Eu era bem novinho quando o li pela primeira vez, em uma edição bonita, toda esclarecedora, não só da prática oracular, como, principalmente, da filosofia que o embasa. Em síntese, e tomando a liberdade de reduzir imensamente a grandeza do pensamento, o Livro das Mutações afirma que tudo muda. Melhor: que a lei da natureza é a mudança. Simples e legítimo, mas movimentou minha cabeça de pré-adolescente católico. O mais interessante foi que me aproximei do livro por seu caráter oracular; aos treze ou catorze anos, é realmente possível acreditar que você pode desvendar o futuro com alguns palitos ou moedas. A rasteira na minha expectativa não foi pequena, mas o efeito foi melhor do que o esperado. O I Ching não projeta a mutação na dimensão transcendente, sim a reconhece no mundo natural. Trocando em miúdos, a mutação não é algo a se esperar da dimensão espiritual como u

Desconecta

Todo mundo já cogitou deixar as redes sociais. Elas estão em todas as classes, em todas as faixas etárias e em todo canto. Tornaram-se uma constância e uma necessidade contemporânea. Se não agora, em pouco tempo, será inimaginável o convívio social sem o intermédio delas.  Lembro-me de quando eu, no início da adolescência, fiz alguns retiros espirituais com os católicos com os quais cresci. Para além do impacto de uma experiência nova ainda bem jovem, recordo com clareza o quanto parecia-me desafiador passar tantos dias sem televisão – internet móvel, à época, não era onipresente. Participei de muitos outros desses e fui compreendendo que uma parte do processo era justamente desconectar das mídias e das informações que nos chegam sem necessariamente terem sido buscadas, mas às quais estamos constantemente expostos e habituados. A televisão, pobre coitada, é a prima velha do que viriam a ser as redes sociais. Onipresente, viciante, meio lúdica, meio infernal. Por mais que nos se

Não é uma partida de futebol

Há cerca de trinta dias das Eleições Municipais e com uma grave pandemia ainda acontecendo, o interesse do brasileiro pela escolha de vereadores e prefeitos parece longe de algum nível relevante de comprometimento.  É de fato difícil manifestar interesse por política quando mais de 150 mil vidas foram perdidas por irresponsabilidade daqueles que estão agora no poder e que são os responsáveis diretos por gerir as orientações ao cidadão e administrar o sistema de saúde.  Frutificou na cultura brasileira ao longo do tempo uma certa ojeriza pelo sistema politico, nosso caráter irreverente como que pouco reconhece a relevância do pleito e elege párias e escroques como Tiriricas e Bolsonaros. Consciência política e, sobretudo, uma legítima corresponsabilidade eleitoral constroem-se através daquilo que nos foi mais neglicenciado ao longo da história: educação de qualidade e justiça social. Não se pode esperar de um povo que não recebe educação pluralista e de qualidade qualquer tipo d

Sintomática

A sugestão de que se olhe para dentro de si é das tarefas mais repetidas e alardeadas em inúmeras opções de autoajuda disponíveis no mercado, de uns tempos para cá, inventaram até uma bizarrice de nome cafona anglófono para qualquer um que se autodenomine capaz de orientar os outros a seguirem suas vidas.  De fato, com a ascensão de tantas possibilidades de existência e a crise da subjetividade cada vez mais incisiva, não é de se admirar que centenas de pessoas queiram tirar seu quinhão das nossas psicopatias, mesmo sem ser de fato preparadas para isso ou, quiçá, serem capazes de gerir as próprias vidas. Aliás, também já foi inventado o político cafona que se denomina “gestor" e antipolítico. Idiossincrasias diversas, todas tão sintomáticas quanto a sociedade que as produz.  Considero, no entanto, que seja possível convir que há uma necessidade generalizada de ajuda. Pessoas dos mais diferentes estratos sociais, com jornadas de vida completamente díspares, às vezes com muito

A senhora na sala

Um dos conhecimentos mais interessantes que adquiri na Letras foi a noção de unidade linguística. Confesso: os estudos de língua e linguística nunca foram meu forte. Em essência: unidade linguística é aquilo que nos faz reconhecer um dado idioma como tal e sermos capazes de nos comunicarmos nele. Qual não foi minha surpresa quando entendi que um dos fatores que mantém unidade linguística em um país, sobretudo em desenvolvimento, como o nosso, é a televisão. Esta semana, a senhora na sala completou setenta anos de existência no Brasil. Sempre gostei TV, de algum modo, ela quem dava certo dinamismo ao mundo, certa dose de sonho, e uma não sei que louca vontade de ser alguém especial e importante, como aqueles que apareciam na tela. O universo da telinha sempre foi uma espécie de desejo inalcançável para aqueles que viviam longe das metrópoles do mundo. Herdo dela a vontade de estar à frente de um público e ter algo a dizer, como também a fantasia de viver vidas di

Autonomia

Pisei na rua pela primeira vez para algo que não fosse a farmácia. Até então, saí de casa menos de dez vezes nessas vinte e seis semanas que estou em São Roque. Elegi um rolê à papelaria, por incrível que pareça, das atividades banais que mais sinto falta. Fiquei pensando sobre isso: sobre o quanto as atividades mais comuns causam uma sensação gigantesca de independência, por mais que tendamos a considerar que grandes decisões ou mudanças o fariam. Eu queria algo muito simples: tirar cópias dos textos que pretendo estudar nas próximas semanas, algo que fazia rotineiramente nos meus dias pré-corona e que ganha gosto de identidade agora. É tolo, eu sei. No fim, nem ficou como eu queria e, admito, já estar adaptado às versões virtuais desses textos, mas papel é papel, sinto gratidão por tudo o que já foi registrado neles, nos que li e rabisquei e nos que não li. Andam querendo taxar o livro. Pobre camarada. Tantas grandes fortunas, lanchas e heranças para serem

As pontas da vida

     O tempo é implacável, qualquer que seja a circunstância. A indiferença de seu transcorrer transtorna a qualquer um com sua superioridade intransigente e humilhante. Nada se pode contra o tempo, ele quem subjuga a todos nós.      Por outro lado, é reconfortante saber que ao menos isso é certo: o tempo sempre passa, para o bem ou para mal.      Há uma única realidade, contudo, contra a qual o tempo pouco pode: a memória. Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta, cantou em verso e reverso a grandeza da memória. Ando às voltas com ela. Pode ser que as semanas transcorridas em minha terra natal tenham avivado lembranças antes relegadas a cantos menos óbvios da minha psique; pode ser que a distância da agitação urbana causem efeito semelhante; ou ainda que a terapia esteja chegando a recantos que não estava acessando antes da pandemia. Fato é que memórias ganham novas perspectivas anos depois e redimensionam o agora quando correlacionadas com circunstâncias do presente.       Memór

O futuro imediato

Vez ou outra, situações dão a impressão de que tudo está estagnado. Os longos meses de pandemia continuam arrastando-se, enquanto muitos retomam as rotinas normais, por vontade ou obrigação, e outros tantos seguem confinados em suas casas, como um ato de resistência. Dia desses, nas videoaulas, alunos perguntaram o que eu achava que devesse ser feito com relação ao possível retorno à convivência escolar. Em nosso caso, classe média paulistana, fato é que as aulas online funcionam  – c onstatei como estudante, espero por isso como professor – e, sendo assim, é viável que caiba a nós estarmos fora de circulação. É bem menos rico do que o cotidiano escolar e a incerteza da durabilidade alimenta esperanças e angústias, mas é o correto a ser feito.  Fora desse recorte, preocupam as enormes perdas educacionais e suas consequências nas próximas décadas. A conta é alta. Alunos estão pagando hoje, a sociedade pagará amanhã. De todo modo, não cabe ao educador fugir ao posicionamento. Não disse

Depois do prazer

Estes meses todos vivendo distante de minha rotina cotidiana têm-me feito pensar bastante sobre o quero, como quero e quanto quero; mais ainda, sobre como satisfazer os desejos e expectativas que prevalecerão após esses mais outros tantos meses que ainda lidaremos com o distanciamento social.  Algo é fato, longe do frenesi, noto com muito mais facilidade as demandas da minha subjetividade. Não porque haja menos diversificação entre elas, mas sobretudo porque há mais tempo para encará-las de modo contemplativo. Há evidente relação entre agitação e a impossibilidade de olhar com calma para os desejos. Mantenho o processo de psicoterapia durante o distanciamento. Cada vez mais, acho fundamental para a saúde ter um acompanhamento psicológico ou psicanalítico. A vida é múltipla, variável, instigante, e as demandas dos desejos são intensas, desconcertantes e muito reais. Perceber os desejos sem estar dentro do turbilhão dos acontecimentos tem sido de fundamental importância para que, ao fim

O indizível

Cresci numa cidade do interior, próxima à capital, mas com ares de província. Fui ensinado a ser devoto de São Roque, o santo padroeiro. Sempre perguntamos entre nós como se explica tal devoção para alguém que não é da cidade. A história e a lenda contam que o vilarejo foi fundado em 16 de agosto de 1657, desde então, os residentes celebram uma missa em homenagem ao jovem francês que abandonou a nobreza e lavava feridas dos atingidos pela peste bubônica. Nos anos 1990, herdei uma festa grande. Sou capaz de ouvir na mente a voz do primeiro bispo destas paragens ecoando, bonachão e feliz, na praça, aquilo que via de seu lugar: o testemunho de fé daquela gente em “Roque, o peregrino do amor”. É assim que sempre tenho São Roque em meu coração, como exemplo de alguém que peregrina, que segue adiante, mesmo na adversidade, levando o testemunho do amor consigo.  Adolescente e jovem adulto, me envolvi em corpo, alma e voluntariado com a paróquia e na festa de São Roque. Guardo enormes memórias

Quebra de silêncio

As rotinas de todos foram alteradas pela pandemia de coronavírus e em decorrência do distanciamento social, não importando opinião ou lado político que se manifestasse a esse respeito. Prestes a completar cinco meses na casa da minha família e com o Brasil tendo ultrapassado mais de cem mil mortos por Covid-19, pergunto-me o que as pessoas fizeram nesse período. A rigor, conversei com uma quantidade relativamente pequena de pessoas ao longo destes meses, ao menos se considerarmos as múltiplas possibilidades de comunicação que nos cercam atualmente. Indiretamente, alcancei uma quantidade grande de pessoas, é verdade, sejam pelas videoaulas ou por postagens regulares em redes sociais – o que não é exatamente a mesma coisa de ter uma boa conversa com alguém que você conhece e ama, ainda que seja por telas. O que estou querendo dizer é: com toda a tecnologia de comunicação já desenvolvida, pode ser que, ironicamente, estejamos nos comunicando menos e pior. Decidido a levar a sério o dever